STF nega liminar contra Mais Médicos. Juiz acusa entidade de buscar reserva de mercado

Marco Aurélio Mello deixa decisão para plenário da Corte. Magistrado de Minas diz que CRM deve refletir se é melhor que paciente seja assistido por estrangeiro ou padeça sem atendimento
São Paulo – Os adversários do programa federal Mais Médicos sofreram hoje (28) duas derrotas na tentativa de derrubar a iniciativa por meio de medida judicial. O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), anunciou no começo da noite que rejeitou pedido de liminar apresentado pelo deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ). Mais cedo, a Justiça Federal em Minas Gerais havia recusado contestação apresentada pelo Conselho Regional de Medicina.
Ao negar a liminar, o ministro  entendeu que cabe ao plenário do Supremo decidir se as regras constitucionais de urgência foram cumpridas na Medida Provisória 621, de 2013, que criou o Mais Médicos. “Descabe, no entanto, nesse campo de relevância e urgência, implementar ato precário e efêmero, antecipando-se à visão do colegiado, não bastasse o envolvimento, na espécie, de valores a serem apreciados. Deve-se aguardar o julgamento definitivo da impetração”, afirmou Marco Aurélio.
O ministro também é o relator da ação direta de inconstitucionalidade (ADI) impetrada pela Associação Médica Brasileira (AMB) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) para suspender o Programa Mais Médicos. Na ação, as duas entidades alegam que a contratação de profissionais formados em outros países sem que sejam aprovados no Exame Nacional de Revalidação de Diplomas (Revalida) é ilegal.
Antes, o juiz João Batista Ribeiro, titular da 5ª Vara Federal da Seção Judiciária de Minas Gerais, negou liminar pedida pelo Conselho Regional de Medicina (CRM-MG) daquele estado contra o programa federal. Ao tomar a decisão, publicada hoje (28), o magistrado advertiu que a entidade busca promover reserva de mercado com a tentativa de se ver dispensada de conceder registro provisório aos profissionais com diploma estrangeiro que chegaram ao país desde a última semana.
“O órgão de fiscalização da classe ao decidir pela não admissão do registro temporário dos médicos intercambistas, ajuizando a presente demanda para desobrigá-lo de efetuar o referido registro provisório pretende instaurar uma verdadeira 'batalha'”, critica, “visando a preservação de uma reserva de mercado aos médicos formados em instituições de educação superior brasileira ou com diploma revalidado no país, em que as vítimas, lamentavelmente, são os doentes e usuários dos órgãos do sistema público de saúde.”
Na visão do CRM-MG, a Medida Provisória 621, de 2013, é inconstitucional porque não há urgência na questão, requisito para a edição de uma MP, e porque a dispensa de revalidação de diploma entraria em conflito com o artigo 196 da Carta Magna, que preconiza a saúde como “direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Mas, para o juiz, trata-se da primeira oportunidade na história do Brasil para que a população “carente e marginalizada”, moradora dos “rincões”, tenha a possibilidade de prolongar a expectativa de vida por meio do atendimento médico adequado.
Os 682 médicos com diplomas do exterior começaram na segunda-feira um curso com duração de três semanas que inclui treinamento técnico para entender o funcionamento do sistema de atenção básica brasileiro e avaliação da proficiência em português, outra argumentação do CRM que foi dispensada pelo juiz. “É de se indagar o que é pior: ser atendido pelo médico intercambista, cuja revalidação do diploma, em caráter excepcional foi dispensada, para atender à necessidade temporária de excepcional interesse público, ou continuar sem assistência alguma?”
Na semana passada, o presidente do conselho regional mineiro, João Batista Gomes Soares, afirmou que orientaria a categoria a não tratar pacientes vítimas de eventuais falhas dos médicos cubanos. “Se ouvir dizer que existe um médico cubano atuando em Nova Lima, por exemplo, mando uma equipe do CRM-MG fiscalizar. Chegando lá, será verificado se ele tem o diploma revalidado no Brasil e a carteirinha do CRM-MG. Se não tiver, vamos à delegacia de polícia e o denunciamos por exercício ilegal da profissão, da mesma forma que fazemos com um charlatão ou com curandeiro”, afirmou.
O CRM argumenta que o Mais Médicos fere a Constituição também na visão de que o exercício da profissão é livre. O contrato de três anos firmado com o Ministério da Saúde prevê que o médico possa atender apenas na localidade para a qual foi selecionado, com salário de R$ 10 mil ao mês, mais ajuda de custo que varia de um a três salários de acordo com a região do país.
Além disso, na visão da entidade, a dispensa de diploma coloca em risco a população, tese com a qual o juiz não concordou. Para ele, o livre exercício da profissão garantido pela Carta Magna não é um valor ilimitado, ou seja, pode haver uma limitação de acordo com as necessidades em jogo.
João Batista Ribeiro concorda com a tese do Ministério da Saúde de que a restrição geográfica é necessária para garantir que os médicos formados no exterior não passem a concorrer no mercado nacional, deixando de lado o objetivo fundamental pelo qual vieram ao país, ou seja, o oferecimento de saúde em lugares desassistidos. “Configurando o ato normativo impugnado, sem qualquer sombra de dúvida, política pública de saúde da maior relevância social de sorte que o bem da vida, que está sob perigo real e concreto, deve ter primazia sobre todos os demais interesses juridicamente tutelados”, argumenta.
Fonte:
http://www.redebrasilatual.com.br/saude/2013/08/juiz-nega-liminar-contra-mais-medicos-e-acusa-entidade-de-buscar-reserva-de-mercado-6895.html
 
O que você precisa saber sobre médicos cubanos
  
Escrito por Hélio Doyle    - no seu blog
Segunda, 26 de Agosto de 2013

Profundo conhecedor da realidade de Cuba e membro do núcleo de estudos cubanos da Universidade de Brasília, o jornalista Hélio Doyle produziu diversas análises técnicas, e sem ranço ideológico, sobre a importação de 4 mil profissionais pelo governo brasileiro. Os textos foram originalmente cedidos ao 247, agora reproduzidos pelo Correio da Cidadania, e permitem uma maior compreensão sobre um tema que tem gerado tanto debate.
O que não se diz sobre os médicos cubanos
A grande imprensa brasileira, que nos últimos anos exacerbou, por incompetência e ideologia, a superficialidade que sempre a caracterizou, tem sido coerente ao tratar da vinda de quatro mil médicos cubanos: limita-se a noticiar o fato e reproduzir as críticas das associações corporativas de médicos e dos políticos oposicionistas. Mantém-se fiel à superficialidade que é sua marca, acrescida de forte conteúdo ideológico conservador e de direita.
Não conta, por exemplo, que médicos cubanos já trabalharam no Brasil, atendendo a comunidades pobres e distantes nos estados de Tocantins, Roraima e Amapá. Não houve nenhuma reclamação quanto à qualidade desse atendimento e nenhum problema com o conhecimento restrito da língua portuguesa. Os médicos cubanos tiveram de deixar o Brasil por pressão do corporativismo médico brasileiro – liderado por doutores que gostam de trabalhar em clínicas privadas e nas grandes cidades.
A grande imprensa não conta também que há mais de 30 mil médicos cubanos trabalhando em 69 países da América Latina, da África, da Ásia e da Oceania, lidando com pessoas que falam inglês, francês, português e dialetos locais. Só no Haiti, onde a população fala francês e o dialeto creole, há 1.200 médicos cubanos – que sustentam o sistema de saúde daquele país e, como profissionais com alto nível de educação formal, aprendem rapidamente línguas estrangeiras.
O professor John Kirk, da Universidade Dalhousie, no Canadá, estudou a participação de equipes de saúde de Cuba em vários países e é dele a frase seguinte: “A contribuição de Cuba, como ocorre agora no Haiti, é o maior segredo do mundo. Eles são pouco mencionados, mesmo fazendo muito do trabalho pesado”. Segredo porque a imprensa internacional – especialmente a estadunidense – não gosta de falar do assunto.
Kirk contesta o argumento de que os médicos cubanos que atendem as comunidades pobres em vários países não são eficientes por não dominar as últimas tecnologias médicas: “A abordagem high-tech para as necessidades de saúde em Londres e Toronto é irrelevante para milhões de pessoas no Terceiro Mundo que estão vivendo na pobreza. É fácil ficar de fora e criticar a qualidade, mas se você está vivendo em algum lugar sem médicos, ficaria feliz quando chegasse algum”.
O problema dos que contestam a vinda de médicos estrangeiros e, em especial dos cubanos, é que as pessoas que passam anos ou toda a vida sem ver um médico ficarão muito felizes quando receberem a atenção que os corporativistas do Brasil lhes negam e tentam impedir.
Socialismo e Guerra Fria
Duas informações referentes à vinda de médicos cubanos para o Brasil e que podem ser úteis aos que querem ir além do que diz a grande imprensa:
- Cuba é um país socialista e por isso, gostemos ou não, as coisas não funcionam exatamente como em um país capitalista. Como é um país socialista, há a preocupação de manter baixos os índices de desigualdade econômica e social. Por isso nenhuma empresa ou governo estrangeiro contrata trabalhadores cubanos diretamente, em Cuba ou no exterior (nesse caso, quando a contratação é resultado de um acordo entre Estados). Todos são contratados por empresas estatais que recebem do contratante estrangeiro e pagam os salários aos trabalhadores, sem grande discrepância em relação ao que recebem os que trabalham em empresas ou organismos cubanos. Os médicos que trabalham no exterior recebem mais do que os que trabalham em Cuba. Mas, algo como, nem muito que seja um desincentivo aos que ficam, nem tão pouco que não incentive os que saem.
- O governo dos Estados Unidos tem um programa especial para atrair médicos cubanos que trabalham no exterior. Eles são procurados por funcionários estadunidenses e lhes são oferecidas inúmeras vantagens para “desertar”, como visto de entrada, passagem gratuita, permissão de trabalho e dispensa de formalidades para exercer a atividade. Os que atuam na América Latina são os mais procurados e uma condição para serem aceitos no programa é que critiquem o sistema político cubano e digam que os médicos no exterior são oprimidos e mantidos quase como escravos. Os que aceitam as ofertas dos Estados Unidos, os que emigram para outros países ou ficam no país que os recebe depois de terminado o contrato representam cerca de 3% dos efetivos. No Brasil, mantida essa média, pode-se esperar que até 120 dos quatro mil médicos cubanos “desertem”.
Um sistema irreal
A citação a seguir é do New England Journal of Medicine: “O sistema de saúde cubano parece irreal. Há muitos médicos. Todo mundo tem um médico de família. Tudo é gratuito, totalmente gratuito. Apesar do fato de que Cuba dispõe de recursos limitados, seu sistema de saúde resolveu problemas que o nosso (dos EUA) não conseguiu resolver ainda. Cuba dispõe agora do dobro de médicos por habitante do que os EUA”.
Menções elogiosas ao sistema de saúde cubano e a seus profissionais são frequentes em publicações especializadas e ditas por autoridades médicas e organizações internacionais, como a Organização Mundial de Saúde, a Organização Panamericana de Saúde e o Unicef. Mas mesmo assim, querendo negar a realidade, médicos e políticos brasileiros insistem em negar o óbvio, chegando ao absurdo de dizer que nossa população está correndo riscos ao ser atendida pelos cubanos.
Para começar, os indicadores de saúde em Cuba são os melhores da América Latina e estão à frente dos de muitos países desenvolvidos. A mortalidade infantil, por exemplo (4,8 por mil), é menor do que a dos Estados Unidos. Aliás, para os que gostam de dizer que Cuba estava melhor antes da revolução de 1959, naquela época era de 60 por mil. A expectativa de vida dos cubanos é também elevada: 78,8 anos.
Outro, aliás, quanto aos saudosistas: em 1959, Cuba tinha seis mil médicos, sendo que três mil correram para os Estados Unidos quando viram que não haveria mais lugar para o sistema privado de saúde e que os doutores elitistas e da elite perderiam seus privilégios. Hoje tem 78 mil médicos, um para cada 150 habitantes, uma das melhores médias do mundo. Isso permite a Cuba manter mais de 30 mil médicos no exterior. Desde 1962, médicos cubanos já estiveram trabalhando em 102 países.
Em 2012 formaram-se em Cuba 5.315 médicos cubanos em 25 faculdades públicas e 5.694 estrangeiros, que estudam de graça na Escola Latino-americana de Medicina (Elam). A Elam recebe estudantes de 116 países, inclusive dos Estados Unidos, e já formou 24 mil estrangeiros.
Os médicos cubanos se formam após seis anos de graduação, incluindo um de internato, e mais três ou quatro anos de especialização. Os generalistas, que atendem no sistema Médico da Família (um médico e um enfermeiro para 150 a 200 famílias, e que moram na comunidade que atendem), são preparados para atuar em clínica geral, pediatria, ginecologia-obstetrícia e fazer pequenas cirurgias.
Dos quatro mil médicos que vêm para o Brasil, todos têm especialização em medicina de família, 42% já trabalharam em pelo menos dois países e 84% têm mais de 16 anos de atividade. Grande parte já atuou em países de língua portuguesa, na África e em Timor-Leste. Foi em Timor, a propósito, que ocorreu o fato seguinte: o embaixador estadunidense exigiu do então presidente Xanana Gusmão que expulsasse os médicos cubanos. Xanana perguntou quantos médicos dos Estados Unidos havia no Timor-Leste e quantos o país mandaria para substituir os mais de duzentos cubanos que estavam lá. Diante da resposta, de que havia apenas um, que atendia os diplomatas norte-americanos, e que não viria mais nenhum, Xanana, simplesmente, disse que os cubanos ficariam. E estão lá até hoje. Falando português.
Os limites do corporativismo
1 – Sindicatos de trabalhadores existem para defender os interesses das categorias profissionais que representam. São corporativistas por definição.
2 – É natural que esses interesses conflitem com os de seus empregadores, especialmente em questões ligadas à remuneração e condições de trabalho.
3 – Muitas vezes os interesses de uma categoria batem de frente com interesses de outras categorias, e aí cada sindicato defende seus representados, o que também é natural.
4 – Outras vezes os interesses de uma categoria colidem com interesses do país e da sociedade. Essa é uma questão complicada: quem tem legitimidade para definir os interesses nacionais é a população, que só é consultada quando elege seus governantes e representantes. E esses governantes e representantes têm, muitas vezes, sua legitimidade contestada.
A contradição entre interesses corporativos e interesses nacionais e da sociedade, assim, só pode ser resolvida pelos que têm legitimidade para expressar esses interesses nacionais e da sociedade em seu conjunto.
Nos últimos dias, tivemos três bons exemplos de como os interesses corporativos colidem com os da sociedade. São três causas que podem interessar às categorias profissionais, mas violam a legislação e ferem os direitos humanos e sociais:
- O sindicato dos servidores no Legislativo defendeu que funcionários da Câmara e do Senado recebam remunerações que superam o teto salarial que deve vigorar para todos.
 O sindicato dos aeroviários defendeu a tripulação que criou absurdos e desnecessários constrangimentos a uma criança de três anos e a sua família, por causa de uma doença não infecciosa.
- Os sindicatos de médicos são contra o trabalho de médicos estrangeiros no Brasil, mesmo não havendo médicos brasileiros interessados no trabalho que eles vão fazer.
O corporativismo é inevitável, e os interesses corporativos devem ser discutidos e considerados. Não podem é prevalecer quando contrariam interesses e direitos da sociedade: o teto salarial dos servidores tem de ser respeitado, ninguém pode ser submetido a constrangimentos por causa de uma doença e as pessoas têm o direito de receber assistência médica, seja de um brasileiro ou de um estrangeiro.
Sistema cubano dá “de lavada”
As frases a seguir são de um médico cubano radicado no Brasil desde 2000. Insuspeito, pois abandonou Cuba. Formou-se lá e se especializou em epidemiologia e administração da saúde. Trabalhou por dois anos em Angola e veio para Santa Catarina em um acordo da prefeitura de Irati com o governo de Cuba.
Dois anos depois resolveu ficar no Brasil, onde vive com a mulher e quatro filhos. Critica o sistema de pagamento aos médicos, dizendo que ficava com 50% do que era pago pela prefeitura. Mesmo tendo “desertado”, não entra na onda dos médicos brasileiros e dos oposicionistas de direita que atacam a vinda dos cubanos.
O que o médico cubano Alejandro Santiago Benítez Marín, 51 anos, disse ao portal G1:
“Em dois meses, eu já entendia perfeitamente tudo (diferenças culturais, língua). Fazer medicina é igual em todo o lugar, só muda o endereço”.
“Eu não sou contra que eles venham, não. Os médicos cubanos são muito bons, nossa medicina é a melhor do mundo. Só não concordo com a forma como o governo quer pagar, repassando o dinheiro para Cuba e Cuba vai decidir a quantia que vai repassar. Isso não tem cabimento”.
“Há médicos cubanos fazendo um excelente trabalho no Norte e Nordeste. O Conselho Federal de Medicina tem nos ofendido sem necessidade desde o início, chamando-nos de curandeiros, feiticeiros. Eu sou incapaz de ofender um médico brasileiro, mesmo conhecendo médicos brasileiros que cometem erros, a imprensa publica sempre. Tem médico ruim e bom tanto no Brasil quanto em Cuba. Não temos culpa do que está acontecendo no Brasil e que os médicos de fora têm que vir”.
“Em Cuba é bem mais fácil o atendimento, não tem esta fila que há hoje no SUS, em que há a demora de três meses para a realização de exames simples, como ultrassonografia ou ressonância. Em Cuba este exame é feito no mesmo dia ou na mesma semana. Esta demora faz o diagnóstico médico ter que esperar”.
“O sistema cubano dá ‘de lavada’ no SUS, tanto no atendimento normal quanto de emergência. A especialização nossa é muito boa, tanto que Cuba exporta médicos para mais de 70 países”.
Helio Doyle é jornalista.Blog do Hélio Doyle
Carta Maior 28/08/2013

Cubanos chegam e já diagnosticam a doença no Brasil
por Saul Leblon 
Eles desembarcaram há apenas quatro dias.

Ainda nem começaram a trabalhar. Mas alguma coisa de essencial já foi diagnosticada entre nós, apenas com a sua presença.

Uma foto estampada na Folha de S. Paulo desta 3ª feira sintetiza a radiografia que essa visita adicionou ao diagnóstico da doença brasileira.

Um médico negro avança altivo pelo corredor polonês que espreme a sua passagem na chegada a Fortaleza, 2ª feira.

O funil do constrangimento é formado por jovens de jaleco da mesma cor alva da pele.

Uivam, vaiam, ofendem o recém-chegado.

Recitam um texto inoculado diuturnamente em sua mente pelas cantanhêdes, os gasparis e assemelhados.

Centuriões de um conservadorismo rasteiro, mas incessante.

É força de justiça creditar a esse pelotão a paternidade da linhagem, capaz de cometer o que a foto cristalizou para a memória destes tempos.

"Escravo!" "Escravo!" "Escravo!".

Ecoa a falange cevada no pastejo da semi-informação, do preconceito e das tardes em shopping center.

Foi programada para cumprir esse papel, entre outros, de consequências até mais letais para a democracia e a civilização entre nós.

Um desembarque que em outros países seria motivo de festas, homenagens e bandas de música.

Aqui é emoldurado pelo espetáculo deprimente de uma classe média desprovida de discernimento sobre o país em que vive, o mundo que a cerca e as urgências da sociedade que lhe custeou o estudo.

Para que agora sabotasse a assistência cubana aos seus segmentos mais vulneráveis, aos quais ela se recusa a atender.

Os alvos da fúria deixaram família, rotinas e camaradagem para morar e socorrer habitantes de localidades das quais nunca ouviram falar.

Mas que a maioria dos brasileiros também sequer desconfia que existam.

Com o agravante de que ali talvez jamais pousem seus pés. Coisa que os cubanos farão. Por três anos.

E que graças a eles, agora saberemos que existem.

Se o governo for safo – espera-se que seja – fará do Mais Médico uma ponte de conexão de nós com nós mesmos.

O futuro da democracia agradecerá.

Os pilares dessa ponte, de qualquer forma, são os que transitam agora altivos diante da recepção que indigna o Brasil aos olhos do mundo.

Perfis médicos ainda improváveis entre nós, apesar do Prouni e das cotas satanizadas pela mesma cepa mental adestrada em compor corredores e funis.

Nem sempre físicos, como agora.

Mas permanentemente intolerantes, na defesa da exclusão e do privilégio.

Formados em uma ilha do Caribe desguarnecida de recursos, por uma escola de medicina que contorna a tecnologia cara, apurando a excelência do exame clínico – aquele em que o médico demora uma hora ou mais com o paciente, rastreando o seu metabolismo – eles passarão a cuidar da gente brasileira pobre e anônima. (Leia a excelente entrevista de Najla Passos com a doutora Ceramides Carbonell sobre a formação de um médico em Cuba).

Campos Alegres de Lourdes, Mansidão, Carinhanha, beira do São Francisco, Cocos, Sítio do Quinto, Souto Soares... Quem conhece esse Brasil?

É para lá que eles vão. E para mais 3.500 outras localidades.

Um Brasil esquecido, em muitos casos, mantido na soleira da porta, do lado de fora do mercado e da cidadania.

Que sempre esteve aí. Mas que agora, pasmem, terá um sujeito interessado em ouvir o que sua agente tem a dizer, esforçando-se por entender pronúncias que até nós, os locais, teríamos dificuldade de discernir.

O `doutor de Cuba' de fala estrangeira e jeito parecido com a gente estará ali.

A examinar, apalpar dores, curar vermes, prescrever cuidados, encaminhar cirurgias, ouvir e confortar.

Com remédios, atenção e esperança.

Houve um tempo em que essas expedições a um Brasil distante do mar eram feitas por brasileiros, e de classe média.

Protagonistas de um relato épico, de nacionalismo não raro ingênuo. Mas que aproximava e treinava o olhar do país sobre ele mesmo.

Coisa que a hiper-conexão disponível agora poderia fazer até melhor.

Não fosse a determinação superior de afastar e dissimular, o que muitas vezes se alcança destacando o pitoresco.

Em detrimento do principal: as questões do nosso tempo, do nosso desenvolvimento, as escolhas que elas nos cobram. E os interesses que as bloqueiam.

Tivemos a Coluna Prestes, nos anos 20.

Os irmãos Vilas Boas, apoiados por malucos como Darcy Ribeiro e entusiastas como Antonio Calado, fizeram isso nos anos 40/50 e início dos 60, quando foi criado o Parque Nacional do Xingu.

Trouxeram a boca do sertão para mais perto do olhar litorâneo e urbano.

Desbastavam distancias a facão.

Na raça, traziam horizontes, aproximavam rios, tribos, desafios e, de alguma forma, semeavam um espírito de pertencimento a algo maior que a linha do mar e a calçada de Copacabana.

A utopia geográfica, se por um lado borrava os conflitos de classe, ao mesmo tempo colidia com o país real que os esperava em cada socavão, de trincas sociais, fundiárias, étnicas e econômicas avessas à neblina da glamorização.

Paschoal Carlos Magno, a UNE e o CPC, o Centro Popular de Cultura, fariam o mesmo nos anos 60, antes do golpe militar.

As famosas `Caravanas do CPC' rasgaram o mapa do sertão.

Desceriam o São Francisco nas gaiolas lendárias para garimpar e irradiar a cultura popular em lugares onde agora, possivelmente, um doutor cubano irá se instalar.

Caso de Carinhanha, por exemplo, um dos mais belos entardeceres do São Francisco.

Onde foi que a seta do tempo se quebrou?

Por que já não seduz a grande aventura de nossa própria construção?

Uma leitora de Carta Maior, Odette Carvalho de Lima Seabra, resume em comentário enviado ao site o núcleo duro do problema.

" A geração dos nossos jovens doutores", escreve, " jamais compreenderá de que se trata. Foram criados nos shopping centers. A escola secundária limitadíssima no seu alcance humanístico os fez também vítimas sem que o saibam que são. Uma revolução que durou vinte anos e cujo sentido era o de esvaziar de sentido a vida de todos nós deixou no seu rescaldo, esse bando de jovens, como são os nossos doutores, muito alienados. É tempo de aprender com os cubanos", conclui Odette.

Colocado nos seus devidos termos, o impasse readquire a clareza histórica de que se ressente a busca de soluções.

Entre indignado e estupefato, o conservadorismo nega aos visitantes cubanos outra referência de exercício da medicina que não a dos valores argentários.

Ética médica, solidariedade, internacionalismo e humanismo formam uma constelação incompreensível a quem divide o mundo entre consumidores e escravos.

À esquerda, no entanto, cabe também evitar simplificações.

Se quiser enxergar a real abrangência das tarefas em curso, é preciso admitir que não estamos diante de uma batalha entre anjos e demônios.

Os médicos do Caribe não nascem bonzinhos. Tampouco endemoninhados, os dos trópicos.

Eles são formados assim. Por instituições.

A escola, por certo, mas a mídia, sem dúvida, que a completa pelo resto da vida.

É vital que o governo, lideranças sociais e os intelectuais compreendam o fundamental em jogo.

Se quisermos colher frutos duradouros com o `Mais Médicos', o passo seguinte do programa terá que ser a reforma universitária brasileira.

Que reaproxime universidade e a juventude das grandes tarefas coletivas do nosso tempo.

As diferenças entre a formação do cubano hostilizado na chegada a Fortaleza, e aqueles que o ofendiam não são apenas de ordem técnica.

Mas, sobretudo, de discernimento diante do mundo.

A ponto de um não achar estranho sair de seu país para ajudar um outro.

Nem considerar despropositado que parte de seu ganho se transforme em fundo público de reinvestimento.

O oposto das convicções dos que o agraciavam com o corolário de sua própria servidão.

Esse talvez seja o aspecto mais chocante da visita que acaba de chegar.

E, sobretudo, o mais instrutivo.

Ela escancara a doença social que corrói o nosso metabolismo. E adverte para as limitações que irradia.

Na sociedade que estamos construindo.

Na mentalidade que vai se sedimentando. No risco que ela incide sobre o todo.

Para que o `Mais Médicos' um dia possa ser dispensável, o Brasil precisa se tornar ele próprio um grande `Mais Solidariedade'.

Como faz Cuba desde 1959, com todos os seus erros, acertos e percalços.

"Não há dengue em Cuba"

médica cubana Ceramides Almora Carbonell, 42 anos, falava emocionada da recepção calorosa dos brasileiros, quando concedeu entrevista à Carta Maior nos corredores da Fiocruz, em Brasília, onde médicos brasileiros e estrangeiros que irão atuar no Programa Mais Médicos participam de um curso de formação. Na entrevista à Carta Maior, ela fala sobre sua experiência como médica e sobre a situação da saúde em seu país. 
A reportagem é de Najla Passos, publicada por Carta Maior, 27-08-2013.
A médica cubana Ceramides Almora Carbonell, 42 anos, ainda falava emocionada da recepção calorosa dos brasileiros, quando a encontrei nos corredores da Fiocruz, em Brasília, onde médicos brasileiros e estrangeiros que irão atuar no Programa Mais Médicos participam de um curso de formação. Ela nasceu em Guane, um pequeno município de 35 mil habitantes na província de Pinar del Rio, famosa pela produção dos charutos cubanos. Aos 5 anos, mudou-se para a capital, onde cursou o estudo básico e médio. Com 17 anos de prática médica e experiências internacionais em Honduras e Bolívia, está divorciada há dois anos e não possui filhos. Decidi iniciar por aí nossa entrevista.
É mais fácil deixar seu país quando não se tem marido e filhos?, questionei.
“Não tenho marido e filhos, mas tenho família: pai, mãe, irmão. Mas mesmo meus colegas que têm filhos, não temem deixá-los porque sabem que, em Cuba, eles serão muito bem assistidos, terão acesso gratuito à educação e saúde de qualidade. Além disso, os colegas médicos que permanecem na ilha criam uma espécie de rede de solidariedade para atender as famílias dos que estão fora. Nossos companheiros policlínicos visitam nossas famílias e cuidam para que sejam assistida nas suas necessidades. Eles ligam para meus pais, visitam minha casa e, assim, posso viajar tranquila”, explicou.
- Seus pais também são médicos?
“Não. Eles são professores, já aposentados".
- E seu irmão, é médico?
“Não, eletricista. Sou a única médica da família”.
- E como você decidiu fazer medicina?
"Em Cuba, as escolas promovem ciclos de interesse que vão combinando as coisas que você gosta desde pequena. Por exemplo, vão bombeiros, professores, esportistas e vários outros profissionais, dentre eles os médicos. Isso para formar, desde pequeno, conhecimento sobre todas as áreas. Eu sempre gostei sempre da medicina. No ensino médio, participei do ciclo de interesse de cirurgia experimental e, depois, ainda participei do ciclo de medicina geral e integrada, ainda em Pinar Del Rio. Depois passei pela faculdade de medicina, seis anos de muito estudo. Era um período muito duro. Mas consegui nota máxima em todas as disciplinas. Em seguida, prestei os dois anos de serviço social obrigatório em Guane".
- Você voltou a sua cidade natal para clinicar?
"Sim, é uma cidade muito pequena, mas gosto muito de trabalhar lá".
- Não fez nenhuma especialização?
"Depois do serviço social, fiz três anos de especialização em medicina geral e integrada, como todos os médicos cubanos que vieram para o Brasil. Seria o equivalente, aqui no Brasil, a medicina familiar, que ensina ver a pessoa no seu conjunto. Fiz a especialização em dois níveis. Sou mestre em Procedimento e a Diagnósticos Primários de Atenção à Saúde".
- E como você aprendeu o português?
"Meu pai morou na Guiné Bissau por um ano e se apaixonou pelo idioma. Ele me ensinava desde que eu era bem pequena".
- Você disse que, em Cuba, os estudantes escolhem fazer medicina por vocação. No Brasil, os cursos de medicina são os mais caros, nas universidades particulares, e os mais concorridos, nas universidades públicas e, com isso, acaba que praticamente só os mais ricos, que têm como pagar uma educação de maior qualidade, conseguem acesso a eles.
"Em Cuba, a oportunidade é a mesma para todos os cubanos. Primeiro, não há classes sociais diferentes. Todos somos iguais. Não há discriminações por sexo ou raça. Sou mulher, sou mulata, mas estou aqui como todos os outros companheiros da brigada."
- Os brasileiros têm muita dificuldade em entender como vocês podem vir para cá sem receber o mesmo salário pago aos demais profissionais que integram o programa, como vocês aceitam que parte dos seus salários seja retida pelo governo. Como você vê isso?
"Eu conheço essa polêmica capitalista. É que vocês não entendem que nós não trabalhamos por dinheiro, mas por solidariedade, humanismo. O comandante Fidel Castro, nosso líder nacional e também latino-americano e mundial, tem uma frase que diz que “ser internacionalista é saudar nossa própria dívida com a humanidade”. E nós carregamos esse conceito em nosso coração. Desde pequenos, já aprendemos sobre internacionalismo, solidariedade, honradez, bondade, profissionalismo. Eu acho até que o povo cubano não poderia viver sem esses conceitos, que estão na base da sua cultura. Como diz nossa ministra da Saúde, temos um recurso muito grande, que é nosso próprio conhecimento e o amor do nosso povo por outros povos irmãos".
- Você falou que já esteve em outras missões internacionais...
"Sim, trabalhei por dois anos na Bolívia, em Potosí, o departamento mais pobre do país. Um lugar cheio de riquezas, mas onde o povo é muito pobre. Também atuei em Três Cruzes, uma aldeia muito pequena e pobre. Lá, eu tive o prazer de trabalhar muito e conseguir inaugurar um hospital. Em Honduras, trabalhei em Nova Esperança, em municípios muito pobres".
- E, nesses locais, vocês tinham acesso a equipamentos, infraestrutura e tecnologia para atender adequadamente os pacientes?
"Não. Nós trabalhávamos com o método clínico. Nós examinávamos os pacientes. Tocávamos as pessoas, conversávamos com os doentes. A falta de tecnologia não é problema para mim e nem para a brigada cubana, que trabalha muito com este método. E é com isso que esperamos melhorar muito a saúde do seu povo. Muitos países não têm dinheiro para pagar a tecnologia avançada. Sei usar um ultrassom, mas pratico muito o método clínico".
- Outra crítica das entidades médicas brasileiros é que, em Cuba, por conta do longo embargo econômico, o acesso à tecnologia é muito restrito, o que provoca uma defasagem na formação dos médicos e os impossibilita de atuar adequadamente no Brasil. Você concorda com isso?
"Cuba é um país pobre e bloqueado, mas nossos indicadores de saúde são excelentes. E isso não tem a ver com muita tecnologia. Estamos entre os cinco países com menor índice de mortalidade infantil: menos de 4,5 por mil nascidos vivos. Isso é graças ao nosso esforço, porque estudamos muito, investimos em pesquisas, praticamos muito o método clínico, e isso faz a diferença. Também temos uma vigilância epidemiológica muito boa, fundamental para todos. E a saúde cubana é multissetorial: até a população participa. A dengue, por exemplo, é uma doença transmissível. Se o governo não educa sua população, todos morremos.
- Há dengue em Cuba?
"Não, não há. Eu citei a dengue porque é uma doença comum no Brasil. Já atendi muitos pacientes com dengue, mas em Honduras. Não em Cuba, que temos uma vigilância epidemiológica forte. E nem na Bolívia, porque atuei no altiplano, onde é muito frio".

Em 1999, no (des)governo FHC, a Veja comemorou a vinda dos “doutores de Cuba” 
26/08/2013
Cuba_Veja01
O mundo gira, a Lusitana roda e a mídia golpista continua cada vez mais golpista. Reparem a reportagem acima publicada em 20 de outubro de 1999. Na época, como era o (des)governo do entreguista FHC, a revista [da] marginal lançava loas à vinda dos “doutores de Cuba”. Atualmente, como é o governo federal petista que consolidou o acordo para chegada de médicos, a famiglia Civita resolveu tratar o episódio como “invasão comunista”.
Leia abaixo quem foi um dos responsáveis pela vinda dos profissionais cubanos. É de chorar a mídia brasileira.